Fórum de Reflexão Económica e Social

«Se não interviermos e desistirmos, falhamos»

sexta-feira, maio 19, 2017

Esquerda e Direita no Século XXI - To be or not to be - Reflexões (VI) (parte III/III)


PARTE III: A ESQUERDA E A DIREITA NO SÉCULO XXI

O que se pode entender por Esquerda e Direita nos nossos dias? A resposta é importante para se justificar ou refutar mais concretamente a persistência dessa polarização.

É, pois, necessária uma redefinição atualizada de esquerda e de direita, como tendências de pensamento, posturas face à realidade. Parece-me que um elemento básico reside – ainda e sempre – na aceitação, justificação e defesa (pela direita) dos privilégios associados a estatutos sociais e económicos, assim como na relevância dos respetivos símbolos; ou não (pela esquerda).

A chamada “direita liberal” recupera o princípio máximo da liberdade individual como motor criativo da sociedade, com particular incidência na área dos negócios. É uma evolução intelectual do conceito de self made man, de contornos eminentemente monetários e económicos – estimulando a ascensão social pelo empreendedorismo e pelo retorno financeiro que este traz, quando (supostamente) bem conduzido. Mas a realidade e a literatura estão cheias de “desvios” que tal perspetiva da vida pode trazer: “Chegarei lá, no matter what!”, assegura-se o self made man. Ora... “no matter what” traz frequentemente, como outro lado da moeda liberal, grandes problemas, para o próprio e, às vezes, para a família e para outros, “esmagados” pelos passos de gigante do empreendedor.

Nesta perspetiva, o Estado é quase sempre visto como um empecilho, algo que deve ter uma dimensão e uma capacidade de intervenção diminutas, que não atrapalhem, que não criem obstáculos à dinâmica empreendedora dos que “querem fazer”. Acontece que, hoje, os que “querem fazer” são também os inventores e usuários das farsas produtivas denominadas “produtos financeiros”. Ora, não terá sido a especulação nestas abstrações aberrantes que, de braço dado com a corrupção, levou à ruina, ou quase, boa parte da população mundial? Deverão os reais e falsos “empreendedores” ter rédea solta? Deverá o Estado dar-lhes a bênção, “no matter what”, porque lhes atribui a criação de riqueza? Será natural e, portanto, aceitável a progressiva concentração de riqueza no Mundo? Deverá ficar impune a exploração infame dos “outros”, sem sequer uma restrição de idade?

Falei atrás em evolução intelectual porque, muitas e muitas vezes, o self made man era homem de baixa formação cultural e intelectual, que tendia a desprezar o que não fosse o “negócio”. Não deve ser à toa que no Brasil, em tempos terra de eleição para estas pessoas, o significado de “negócio” aí se tenha generalizado com o significado de “coisa”.

Claro que a liberdade criativa, vital agente de transformação, a sua potencialidade e força geradora de novas realidades, são fundamentais para os indivíduos e as sociedades humanas. Não podem, de modo algum, ser subestimadas. Esse foi, creio, um dos grandes problemas da doutrina comunista, em que até a liberdade criativa dos artistas acabou por ser submetida ao pseudosserviço da revolução e do proletariado, culminando no denominado “realismo socialista” – termos que, se bem observados, resumem o espartilho a que os artistas se deveriam submeter – e nos atraentes grafismos dos cartazes de propaganda representando um sorridente Líder e um radioso Mundo Melhor. Que ilusão e manipulação!

A liberdade criativa é fundamental em todos os aspetos da ação humana e, só por isso, faz explodir as amarras do materialismo. A “liberdade” necessita de condições materiais, naturalmente, mas não se restringe a elas. A liberdade artística, por exemplo, extravasa largamente o realismo, só pode subsistir e criar asas através do chamado (e tantas vezes desprezado) idealismo. O valor – se tal existe – de um obra artística não se pode medir realisticamente, materialmente. Não se trata, pois, de um bem estritamente material, nem na sua criação nem na sua “apropriação” pela comunidade. O mesmo pode ser dito das obras científicas.

 

Ou seja: a esquerda, no século XXI, precisa de ser menos “materialista” e mais “idealista”. O idealismo foi lançado às urtigas do descrédito pelo materialismo dominante, à esquerda, desde Marx ou mesmo antes. A grande preocupação, o grande objetivo revolucionário da filosofia de então era contribuir para mudar o Mundo e não apenas para o interpretar; preocupação bastante compreensível e louvável, face às condições miseráveis, muitas vezes sub-humanas, em que vivia e trabalhava a maioria da população, particularmente o proletariado.

Contudo, século e meio passado sobre essa época, que gerou ideologias comunistas e anarquistas, tal império filosófico de feição positivista – fundamentado quase estritamente nas “condições materiais” da existência e na rejeição do “idealismo alienante” propalado pelos exploradores – deve perder autoridade. Deve fazê-lo, como linha inspiradora da esquerda, porque foi a semente do autoritarismo que impôs “cientificamente” a direção a seguir. Não tenho grande dúvida de que foi aquela imposta linha restritiva – e repressora – que levou à proclamada “degenerescência” do comunismo (inevitavelmente, diria Bakunine!) e finalmente ao seu colapso; isto aplica-se também à linha “mista” que hoje se encontra na China, forçada a admitir uma “abertura espiritual” e a usar palácios imperiais e mosteiros budistas como riqueza turística, já que, neste aspeto, nada criou e muito destruiu. Entretanto, na Coreia do Norte, pseudo-república socialista sob o signo da ideologia juche, o poder autocrático usa e deturpa o “idealismo” na manipulação dos factos e na construção de uma nova forma de culto da personalidade: uma mitologia destinada a perpetuar o regime criado por Kim Il-Sung!

Quanto aos Sindicatos e Partidos do mundo capitalista, a orientação de esquerda sempre se centrou nas “lutas dos trabalhadores” por melhores condições de vida, níveis salariais, horários de trabalho, etc. Ora, por importante que isso tenha sido – e continue a ser – o pensamento e a ação da esquerda não deve restringir-se a tais limites.

É que o capitalismo, em certa época aparentemente condenado à decadência e morte, está, pelo contrário, mais vivo e imperante do que nunca (sobretudo, ao que parece, de um ponto de vista financeiro). E isso não se deve apenas à “queda do comunismo” na URSS e países satélites. Este, aliás, caiu de podre (e, afinal, não o capitalismo!); e ainda bem, porque se tornou rapidamente um tipo de sistema iníquo e hipócrita, em que novas classes dominantes se geraram e passaram a defender os seus interesses e privilégios (na prática, a esquerda volveu-se em direita reacionária). O capitalismo, por outro lado, tem tido tanto êxito, transformando-se, ajustando-se e reafirmando-se, porque corresponde à natureza humana, a um certo poder de sedução aliado à evolução técnico-científica, talvez melhor do que os sistemas anteriores, estratificados, e do que os sistemas comunistas, artificiais e impostos.

Desde sempre, a direita de modo algum se deixou acantonar em qualquer tipo de materialismo. Este encontra-se certamente, no pensamento pragmático de direita, tantas vezes egoísta, na mentalidade restrita de um mau gestor, na voragem do lucro e do cash-flow, na justificação de que “as coisas são como são” ou de que “o mundo é assim”. Mas a direita e o chamado centro-direita abarcam também uma ampla espiritualidade, que não se reduz, longe disso, a verniz e falsas devoções; incluem uma boa parte do “mundo cristão”; acolhem, porque sim ou porque aprenderam a fazê-lo, diversas crenças religiosas e filosofias, como a budista (outrora sujeita a feroz repressão pelas autoridades comunistas, sobretudo na China).

No século XX, infelizmente, a esquerda tornou-se refém de conceções autoritariamente materialistas que, na sua vertente comunista, levaram invariavelmente a ditaduras. Por essa razão, os ideais libertários do pós-guerra desenvolveram-se a Ocidente e, sobretudo a partir dos anos 50, nos EUA, a par de relevantes criações/tendências artísticas, incluindo novos géneros musicais, transmutados de raízes populares. Foi aí que, contra todas as resistências conservadoras, surgiram importantes lutas pela igualdade racial ou de género (com Martin Luther King, por exemplo), pela emancipação feminina e não só. Pelo mundo fora, apesar de tais lutas e movimentos terem claras conotações de esquerda e a ela se deverem, não à direita, foi em sistemas capitalistas – e não comunistas – que se despoletaram e, de algum modo, venceram.

São semelhantes ideais libertários que devem ser, cada vez mais, assumidos pela esquerda – mas não como algo “lateral”. É verdade que a atuação do BE ou do Livre já passam por aí; o que incomoda a direita, que os apelida de partidos de extrema-esquerda. A esquerda, como pensamento organizado, deve deixar de “temer” o genuíno idealismo porque este é fundamental para o ser humano; deve valorizá-lo – não vê-lo invariavelmente como muleta ou placebo – e colocar o materialismo no seu devido lugar: como uma das componentes da vida e da História, nada mais.

O século XX mostrou, a começar pela Física Atómica, que a “certeza científica” (base do pensamento marxista e, por conseguinte, da esquerda mais autossuficiente) é muito mais ilusória do que se pensava à época de Marx. Não é à toa que o budismo, com a sua insistência no aspeto ilusório do nosso conhecimento, se tem disseminado pelo Ocidente. A teoria do Caos veio também demonstrar que a previsibilidade dos eventos é tanto mais falível quanto maior a complexidade destes e o prazo a que se aplica. Isto significa que o determinismo marxista é, hoje, totalmente inadmissível.

Respeito enormemente a Ciência, mas não convém espartilhá-la às nossas limitações. Na minha compreensão do mundo intuo uma realidade múltipla, vejo-o composto de diversos “planos”, interdependentes de modo mais ou menos subtil, mais ou menos evidente. A Matemática, que me maravilha, é uma dessas realidades, com manifestas correlações com o mundo material; não é uma invenção humana (exceto no que toca à sua codificação) porque é demasiado perfeita para isso, jamais nela se encontrou uma contradição, e não há, a meu ver, outro modo de compreender a famosa constatação pitagórica de Galileu: “A Natureza está escrita em caracteres matemáticos”. Que cálculos matemáticos, baseados nas abstratas leis de Newton, levem a colocar satélites em órbita, homens na lua e sondas a circular controladamente pelo espaço – realizações bastante físicas, como também, infelizmente, o é a trajetória de um míssil – constituem exemplos da misteriosa ligação entre “ideal” e “real”. E quanto à famosa relação causa-efeito? “É indiscutível!” – apregoa-se, com a autoridade do bom senso. Porém, segundo determinadas equações relativistas, há dois fluxos temporais no universo, as interações de causa e efeito formam uma teia muito mais vasta e complexa do que poderíamos imaginar (o que, a propósito, pode ajudar a compreender estranhos fenómenos psíquicos, como as premonições ou, ao invés, aquela sensação conhecida como “déjà vu”, que tantos de nós já experimentámos inequivocamente).

Resumindo: de um ponto de vista teórico, torna-se fundamental um ou mais pensadores de esquerda, da envergadura de Marx e Engels, que consigam formular novas bases para a “ação da esquerda” e os ideais que a inspiram. A esquerda precisa, urgentemente, de novos ideais, menos restritivos e mais humanos, que lhe permitam enfrentar a direita com propostas consequentes.

Na verdade, esta nova definição de “esquerda”, a sua procura, já está em curso (por exemplo com o Syriza na Grécia). Mas faz falta, parece-me, uma base teórica englobante, que renove a esquerda e dê maior coerência à sua prática, sendo muito mais do que, simplesmente, “do contra”. Em Portugal, mesmo o PCP, com o BE, tem dado alguns passos no sentido de uma pequena modificação na sua “praxis”, ao aceitar participar – com sucesso – numa ação governativa conduzida pelo PS, na implementação de uma alternativa ao que a direita coligada do PSD/CDS garantia não ter alternativa: o fraturante e depauperante programa levado a cabo por esses diletos “bons alunos” da escola de mestre Schäuble, temperado de “tua culpa” e de “janelas de oportunidade”.

Por fim, o papel do Estado é (sempre foi) da maior importância em qualquer visão de esquerda do mundo, exceto na dos anarquistas; o problema da esquerda é que, na sua concretização em regimes comunistas, sempre redundou numa híper-estrutura fortemente repressiva dos cidadãos que deveria representar e defender. Esse papel tem que ser repensado. De um ponto de vista, dito mais “moderado” – o da doutrina socialista (PS) –, um dos papéis centrais do Estado é o controlo dos excessos a que o “liberalismo” pode levar; a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, independentemente da sua condição social, raça, sexo ou religião; a gestão e o governo do “bem comum”. É um ponto de partida.

A Polícia e o Exército são instrumentos de soberania essenciais em qualquer Estado. Mas, à direita ou à esquerda, quando os governos se tornam corruptos ou incompetentes, que direito têm de usar a polícia ou o exército contra a população que se revolta, a favor da manutenção de um espúrio status quo? Já para não falar da “polícia política”, uma aberração própria das ditaduras!... O Estado deve ser forte, na defesa das condições de vida, da educação, da saúde, segurança social, etc. Mas não deve ser uma fortaleza; porque esta abriga e defende sempre os que se apropriaram do Estado para o exercício da sua vontade: oligarquias, governantes e “satélites” que em torno deles orbitam.

A “filosofia política” não se pode isolar da Filosofia em geral, no que concerne à busca do sentido da vida. Não se trata de encontrar e fornecer uma resposta para todos os seres humanos porquanto, além do que a todos se aplica, o sentido tem de ser procurado por cada um em particular, para a sua própria vida. Trata-se de compreender, antes de mais, que regimes autoritários não se preocupam minimamente com o sentido da vida, a não ser o da sua própria existência e preservação. O êxito do capitalismo deve-se, em boa medida, a propiciar certos sentidos para a vida.

Nenhum sistema socioeconómico alguma vez trará a possibilidade de respostas totais, evidentemente; isso corresponderia a uma situação perfeita, coisa que não existe. Não existirá nunca um sistema perfeito (até porque, nesse caso, seria imutável); mas qualquer sistema pode ser aperfeiçoado, melhorado; e é aqui que uma “filosofia de esquerda”, globalmente falando, se torna importante – ou melhor, imprescindível. Porque a diferença de pontos de vista em relação ao que significa “melhorar” é precisamente o que marca a distinção entre esquerda e direita.


Luís Dias Ferreira

Esquerda e Direita no Século XXI - To be or not to be - Reflexões (VI) (parte II/III)


PARTE II: CRÍTICA DA ESQUERDA E DA DIREITA 

No seu colóquio, já referido, Rui Tavares acrescentou às coordenadas “esquerda” e “direita” duas outras: “autoritarismo” e “libertarismo”. Segundo ele, tanto à esquerda como à direita, verificou-se a divisão entre “libertários” e “autoritários”. Remeto o leitor para a argumentação que apresenta no seu livro “Esquerda e direita: guia histórico para o século XXI”, e reproduzo a representação esquemática que aí faz, em quadrantes, ou seja, num quadrado.


Segundo Tavares, nos anos 40, durante a 2ª Guerra Mundial, George Orwell, um homem de esquerda, disse que na época, mais importante do que a divisão entre esquerda e direita, era a divisão entre Libertários e Autoritários. Hoje, o quadrado transformou-se num cubo com a introdução das variáveis opostas “Cosmopolitas” e “Isolacionistas”.

Convém, a propósito, compreender que esquerda e direita autoritárias não são sinónimos de ditadura. A ditadura é o extremo do autoritarismo, assim como a anarquia é o extremo do libertarismo. Sem dúvida que a doutrina marxista é de estilo “autoritário”, baseada no seu pretenso cientificismo, que classifica de “utópicas” todas as doutrinas concorrentes; não necessariamente “ditatorial” apesar de propor a “ditadura do proletariado” – e isso porque, algo ingenuamente, sustenta que essa ditadura se dissolveria por si. A materialização do comunismo, contudo, na sua forma marxista-leninista, estalinista, maoísta, etc., destruiu esse lirismo, desembocando sempre, e desde cedo, em ditaduras que nunca desvaneceram.

Podemos ser levados a pensar que, nos regimes ditatoriais, esquerda e direita carecem de sentido ou de existência. Mas a verdade é que, sob ditadura, o facto de não haver partidos, exceto o que está no poder, não faz desaparecer o sentimento de esquerda e direita, mas apenas a sua expressão partidária. Faz, quanto muito, com que o sentimento se auto reprima, a ponto de, eventualmente, se tornar irreconhecível. Mas não o faz desaparecer. E este é o maior medo, a maior obsessão dos ditadores e dos seus acólitos. O mesmo Orwell compreendeu-o muito bem, em “1984”.

Atribui-se frequentemente à direita a defesa da liberdade individual; e à esquerda a defesa dos interesses e direitos das maiorias, ainda que com desprezo pelo indivíduo. Embora esta apreciação seja muito redutora, a trágica evolução da última ideia e a negação da primeira caracterizou o nazismo, pela transição de um partido socialista, a favor dos trabalhadores, num partido de extrema-direita obcecado pela grandeza da Alemanha, do povo alemão, devidamente “depurado”, e da sua mitologia ancestral com diversas conotações místicas.

Por outro lado, a caracterização da esquerda acima referida não é estritamente válida no caso do pensamento anarquista, que, de um modo radical, procura conciliar os interesses e as liberdades do indivíduo com os da espécie humana, incluindo a sobrevivência. Contudo, o que mais marcou o percurso da esquerda não foi o anarquismo, foi a sua institucionalização comunista como “dono do Estado”. Ora, ainda hoje, o discurso do PCP passa frequentemente por insistir que o problema não são “as pessoas” (que lideram) mas “as políticas” – como se estas existissem sem aquelas, independentemente delas.

O grande equívoco – logro, em boa medida – das supostas “ditaduras das massas” (comunistas, fascistas ou nazis) é que muito rapidamente se transformam em ditaduras de um partido, depois da cúpula do partido e finalmente de uma pessoa, que é progressivamente endeusada. “Transformam-se”, digo eu; e não “degeneram”, de uma raiz tida como pura; é justamente por isso que se trata de um logro.

“Os extremos tocam-se”, costuma dizer-se, por vezes com alguma hipocrisia. Mas o facto é que nesse ponto, o das ditaduras, os discursos, a retórica de esquerda ou direita são semelhantes: servem sobretudo para “legitimar” o regime, a sua imposição e sobrevivência, a repressão das liberdades em nome de um ideal maior. A dialética dualista afunila cada vez mais e termina, sempre ou quase sempre, na “caça ao inimigo”, seja ele de classe, de raça ou de religião, o que forçosamente se ajusta sem maior esforço ao discurso de base. Não há, talvez, nada de mais repugnante que esta deriva mais ou menos violenta para a concentração de poder, associada à identificação e perseguição de determinados bodes expiatórios.

O que isto significa é que a distinção entre ditaduras de direita ou de esquerda é não só irrelevante como, efetivamente, inexistente. Fazer de conta que não, pode ser conveniente para quem o faz, mas nada de bom abona a seu respeito.

Por outro lado, a violência dos regimes opressores e repressivos bestifica e gera violência e ódio reprimidos na população. Por vezes, estes sentimentos extravasam “em massa”, subitamente e de modo incontrolável, com a correspondente natureza destrutiva. Por isso, as ditaduras – como a da Santa Madre Igreja, em tempos – sempre trataram de preencher o imaginário dos submetidos com cenas edulcorantes e a dura e estúpida realidade com cerimónias e jogos brutais; lembremo-nos da reação de júbilo popular nos espetáculos que constituíam o Circo Romano, na era imperial, os enforcamentos na Idade Média, os fogos da Inquisição ou as decapitações pela guilhotina ordenadas pelos jacobinos revolucionários. Ora, mesmo aí, em gentes embrutecidas, o campo das reações é muito mais complexo do que pode parecer e a indiferenciação íntima esquerda/direita está longe de ser verdadeira.

O cerne da democracia é que, numa sociedade “sã”, a esquerda e a direita são tão necessárias uma como a outra: são como os pratos de uma balança, sendo que os indivíduos de “centro” gostam de se ver como os atilados e virtuosos fiéis da mesma.

Claro que os sentimentos de “esquerda” e “direita”, como tantos outros, podem ser manipulados. A propaganda política atua nesse registo, a começar pelos regimes totalitários surgidos no século XX. Mas cada ser humano, com os seus medos e inseguranças, também o faz em relação a si próprio (e a outros), erigindo barreiras, preconceitos e “certezas” que, muitas vezes, nem uma vida inteira consegue abalar. Mas o que está no fundo lá continua. Creio que parte da essencial auto inteligência de cada um de nós é chamar a julgamento todos os meios e instrumentos de auto manipulação e procurar uma maior harmonização com aquilo que, em cada um, é fundamental. E parece que, neste capítulo, não andamos muito longe dos ensinamentos e das práticas budistas.

Luís Dias Ferreira

Esquerda e Direita no Século XXI - To be or not to be - Reflexões (VI) (parte I/III)


PARTE I: A ETERNA DICOTOMIA ESQUERDA-DIREITA

Esquerda e Direita… faz sentido essa dicotomia no século XXI?

Claro que faz todo o sentido! De um ponto de vista individual, “Esquerda” ou “Direita” (cujo conceito e institucionalização nasceu em França pouco antes da Revolução de 1789) corresponde, antes de mais, a um sentimento que vem das entranhas, não propriamente a uma opção - como acontece com tudo aquilo que é realmente fundamental – mas a um “ser e estar” que tem tanto de racional como de emocional. O que eu quero dizer é que o “sentimento” genuíno de se ser de esquerda ou de direita (com os significados que normalmente se atribuem a estas classificações), a empatia com a filosofia e o discurso de um ou de outro lado, é intemporal. Já existia antes da sua institucionalização e continuará a existir, apesar das evoluções de uma e de outra.

Em todo o caso, desde a sua origem institucional, que inaugurou formalmente a vida partidária – conforme explicou Rui Tavares, um dos fundadores do partido de esquerda LIVRE, no colóquio que deu origem a este livro –, a distinção entre esquerda e direita ficou razoavelmente clara. Em meados de agosto de 1789, após a abolição dos direitos e privilégios (feudais) de classe, votou-se se o Rei deveria ter direito de veto ou não. Os votantes agruparam-se em dois lados, face ao presidente da sessão, o que deu origem à nomenclatura e à definição do cerne da oposição em causa:

  • os que, à direita, defendem o direito a privilégios de classe ou de condição superior, herdados ou conquistados, aceites como um dado natural, seja ele ou não decorrente de disposição divina; e ainda o relacionado e inquestionável direito de propriedade (de terra, de coisas ou mesmo de gente); e os que, à esquerda, combatem estas ideias, que querem a mudança, que não aceitam semelhante estratificação e os privilégios dela derivados e veem antes o reverso da medalha – sobretudo por empatia com uma maior ou menor parte da população remetida para estatutos de miséria e exploração, situação esta que é, também ela, de facto ou potencialmente transmitida.

Poderia pensar-se, ingenuamente ou não, que o posicionamento dos indivíduos à direita ou à esquerda decorre da sua posição na sociedade, da classe (“dominante” ou “dominada”) em que se nasceu e/ou se insere. Nada mais falso. Há pessoas de todos os quadrantes políticos em todas as classes: há aristocratas ou filhos de milionários genuinamente de esquerda e operários, camponeses ou taxistas com mentalidade de direita e mesmo de extrema-direita. Esta realidade, que a muitos custa a perceber, mostra claramente que o dito posicionamento é algo de radicalmente interior, embora certamente temperado pelas circunstâncias, eventos e azares que formam o chamado “contexto” que ajuda a moldar o interior ao exterior.

No meu ponto de vista, ninguém escolhe ser de direita ou de esquerda (ou do centro); ‘simplesmente’ é. E “ser”, aqui, é um processo, não algo definido para todo o sempre, como a raça ou a cor dos olhos. Não se trata aqui, evidentemente, de aplicar as Leis de Mendel. Penso que todos nós nascemos – não sei porquê, pode ter a ver com coisas como a reencarnação ou o karma –, com determinadas disposições e potencialidades que eventualmente tomam o aspeto de talentos. Ser, potencialmente, de direita ou de esquerda, é algo desse tipo. Por outro lado, como em tudo o que pertence à esfera do humano (e não só), ser de esquerda ou de direita não é estar numa gaveta, ter um pensamento e anseios de características monolíticas. Isto pode ocorrer, mas, na minha opinião, é sintoma de estupidez ou de hipocrisia. Trata-se de algo que é, globalmente. Pode ter-se certas “ideias de direita”, sendo de esquerda, e vice-versa. Isto relaciona-se também com o facto de os próprios conceitos (as ideias-chave) que definem esquerda e direita não serem nem clara e indiscutivelmente definidos nem imutáveis no tempo. Relaciona-se ainda com a circunstância de que cada ser humano não é um monobloco.

O posicionamento individual é baseado em convicções (mais ou menos profundas, mais ou menos fundamentadas, mais ou menos assumidas) porque não existe uma verdade “superior” que se imponha pelo seu caráter absoluto. Todos nós, como seres humanos, precisamos dessas convicções – em todos os domínios: social, científico, cultural, religioso – porque, sem essa base, à falta de verdades absolutas, nada se pode sustentar. Esse é o papel assumido, na Geometria Euclidiana, por postulados e axiomas. Foi o objeto da busca de uma certeza por pensadores tão distintos como Descartes, que finalmente a corporizou na sua famosa “evidência racional” cogito, ergo sum (penso, logo existo); ou como Kropotkine, no estabelecimento de um código moral anarquista, essencialmente de uma origem natural da moralidade, do bem e do mal, extirpada do que classificava como falsidades sobrenaturais e religiosas.

Porém, o grande perigo das convicções de base é cristalizarem em verdades absolutas para o próprio, que evidentemente, por serem absolutas, excluem o entendimento com as “verdades” dos outros. É porque as “verdades” são, na essência, relativas que se justifica a existência de Esquerda e Direita (e da sua dialética).

Voltamos, assim, à questão de saber se faz sentido a oposição Esquerda versus Direita no século XXI? Ainda existe, afinal, esta polarização algo maniqueísta?

Eu, sendo assumidamente de esquerda, acho que sim. Muita gente – por ironia, tendencialmente de direita – acha que não. E apresenta uma panóplia de argumentos para mostrar que tal divisão está historicamente ultrapassada, demodée, out of fashion. Os argumentos têm, em geral, base institucional. Fala-se de uma pulverização de partidos, de “sensibilidades”, que já não se conforma com a polarização clássica. Não se pode, dizem, pensar a política ou a sociedade em termos de “preto e branco” porque existem inúmeras cambiantes, escalas de cinza. E isso é, evidentemente, verdadeiro; nenhuma pessoa de bom senso sustentará o contrário.

Encontramo-nos face a algo semelhante à dicotomia maniqueísta “Bem” e “Mal”. Existem Deus e o Diabo? Existe alguém totalmente bom ou totalmente mau? Isto é, irredutivelmente bom ou mau? Aqueles que argumentam contra o Herói virtuoso e sem mácula de histórias e lendas tidas por infantis, dizem que essa figura é um absurdo, totalmente irrealista; como é um absurdo o Vilão maléfico. E, contudo, são capazes de aceitar a ideia de Deus e o Diabo como suprassumos do Bem e do Mal, eternos adversários nas esferas celestiais ou nos abismos infernais. Houve uma época (recente) em que se procurou “normalizar” tais figuras, buscando uma via edificante em que qualquer um pode, afinal, ser um herói ou um vilão, dependendo das circunstâncias.

Ora, se não há dúvida de que circunstâncias extremas podem trazer à tona facetas de cada ser humano que habitualmente permanecem “adormecidas”, em camadas profundas do caráter, não é por isso que este deixa de existir; na verdade, é o caráter que distingue os seres humanos a nível mais ou menos profundo. Resumindo: todos teremos em nós algo de bom e algo de mau, facetas essas que podem manifestar-se dependendo das circunstâncias (a compaixão é uma dessas facetas). Talvez seja assim; mas seremos, por isso, todos normalmente iguais? Não! É aqui que, por sua vez, a dicotomia igualdade/diversidade revela a sua existência e, simultaneamente, relevância.

Agora, se a ideia de “escala de cinza” parece razoável, a verdade é que não faz grande sentido sem referência(s) de base. Uma escala de cinza só pode existir em relação a algo, como os extremos “preto e branco”; ou certos marcos, como nas gamas musicais; “escalas”, como “sobe” e “desce”, etc. Como disse atrás, penso que a polarização “esquerda/direita”, tendo em vista o seu caráter de referencial, ainda existe, sempre existiu e existirá; e isso porque corresponde a algo na natureza humana – seja a nível individual ou de coletividade. Ora, o teor individual de “esquerda” e “direita” é a base para tudo o resto: particularmente a sua institucionalização parlamentar, com matriz partidária. De facto, as instituições apenas traduzem, como necessidade social de organização, características da natureza humana.

Contudo, penso que, no essencial, a natureza humana, no geral e no individual, não é escolha dos humanos.

Curiosamente, um setor da esquerda (autoritária), que combate as “injustiças sociais”, pelo direito a isto ou aquilo, tende a desvalorizar o indivíduo, colocando o foco nas “massas”, nas políticas, nas instituições – aparentemente como se fossem abstrações, com existência autónoma. Discordo frontalmente desta visão que, no pior, leva a desresponsabilizar cada um pelo “destino” que traça para si e que, pior, às vezes inflige aos outros. Isto é, não podemos dissociar determinadas políticas dos indivíduos que as implementam – o que é (ou deveria ser) bastante claro na realidade das ditaduras. Comunismo na URSS sem Lenine ou Estaline? Na China, sem Mao? Nazismo sem Hitler ou fascismo sem Mussolini, Salazar e outros Pinochets? Poderemos relevar as patifarias do general Videla nos anos de terror vividos pelos argentinos? Paralelamente, a ideia de que a “causa” é maior que os indivíduos é tanto mais perigosa quanto, muitas vezes, hipócrita e interesseira. A pergunta é equivalente a estas: não eram os Inquisidores pessoas reais? Ou, no campo da Ciência, o que seria a Física sem Galileu, Newton, Einstein ou tantos outros, que a construíram com perseverança e, frequentemente, sacrifício? O que seria a Filosofia sem Platão, Aristóteles, Descartes, Kant ou Hegel? A Matemática sem Euclides, Pitágoras, Arquimedes?

Que a fase de esquerda/direita como trincheiras tenha sido ultrapassada, espero que sim (embora tenha dúvidas). Porque, entre outras coisas, aquela prática implica o dogmatismo acrítico e a obediência cega a uma “nação” ideológica.
Luís Dias Ferreira