Fórum de Reflexão Económica e Social

«Se não interviermos e desistirmos, falhamos»

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

A crise dos sistemas político-económicos



Vivemos numa época em que de certa forma temos assistido à morte progressiva e inexorável da ideologia. Na política, esbatem-se cada vez mais as fronteiras entre as forças mais moderadas, de matriz social-democrata ou socialista. Na economia, com exceção de alguns anacronismos mal sucedidos, abandonou-se quase definitivamente a via do comunismo, para se adotarem diversas conceções do capitalismo (com maior intervenção dos Estados ou de cariz mais neoliberal). No entanto, a crise do subprime, que a falência do Lehman Brothers precipitou em 2008, veio colocar em evidência o fracasso do capitalismo desenfreado, assente na especulação financeira. Assim, foi sem surpresa que assistimos nos últimos cinco anos, em particular na Europa, a um conjunto aparentemente irresolúvel de fragilidades do sistema, que se tem repercutido na relativa ineficácia na resolução de problemas básicos das sociedades atuais, como sejam a falta de crescimento económico, a existência de níveis de dívida insustentáveis ou a manutenção de taxas de desemprego assustadoramente elevadas. Poderíamos ser levados a pensar que estaríamos na presença de um fim de ciclo, mas de facto a teoria económica não criou alternativas credíveis ao capitalismo.

Na verdade ninguém que tenha estudado com alguma profundidade a economia política marxista lhe poderá retirar o mérito de ter exercido uma enorme capacidade de atração, ao ponto de ter motivado a adesão de grande parte das economias mundiais, em particular da ex-URSS e da China. É preciso situar Marx na sua época, em plena Revolução Industrial e no contexto histórico de uma população explorada ao limite, para perceber o alcance da sua visão do mundo. A teoria marxista terá no entanto fracassado por duas razões essenciais:
A primeira pela ideia errada de que é possível que todos os homens sejam iguais, nomeadamente em termos produtivos, quando todos são por natureza diferentes. Como pode um sistema no seu todo progredir, se, pelo menos em teoriaexige a todos o mesmo e pretende devolver na prática um rendimento igual dissociado da produtividade? Essa é provavelmente a primeira razão da falência do socialismo. Há alguns anos tive a oportunidade de visitar um kibutz em Israel, uma forma de coletividade comunitária, que foi essencial na fundação do Estado sionista e que consiste no trabalho coletivo em prol da comunidade, assegurando esta, em contrapartida, a satisfação das necessidades básicas (alimentação, habitação, educação, lazer, etc.). O modelo funcionou com algum êxito nos primeiros anos da criação do Estado de Israel, como funcionara antes em modelos semelhantes (como os kolkhozes na Rússia). Não obstante assentar num modo de vida espartano, o modelo foi tendo sucessivamente mais dificuldades em assegurar as necessidades básicas da comunidade. Daí a decisão do Estado de que todo o kibutz deveria ter pelo menos uma unidade industrial que complementasse as atividades agrícolas e pecuárias, gerando um rendimento adicional, suscetível de equilibrar as necessidades dos membros da comunidade.

Mais uma vez a experiência não foi inteiramente bem-sucedida e concluiu-se que seria necessário recorrer a trabalho assalariado, desvirtuando o modelo socialista e salpicando-o de um capitalismo envergonhado. Nesse kibutz, que ficava situado a cerca de 40 km da faixa de Gaza, como decerto em muitos dos outros que agregam atualmente cerca de 7% da população israelita, a mão de obra era sobretudo palestiniana. Com o início da segunda Intifada e o extremar de posições entre israelitas e palestinianos no final de 2000, que conduziram a uma vaga de atentados no território de Israel, os kibutz tiveram que começar a recrutar trabalhadores provenientes de outros países, particularmente da Ásia. Nessa viagem, tive pela primeira vez a sensação de ter entrado numa outra dimensão, quando, depois de visitar a fábrica, o responsável abriu um portão. Do outro lado, como num travelling panorâmico, surgiu um inesperado e surpreendente mundo, constituído por dezenas de trabalhadores asiáticos de roupas garridas e chapéus de palha cónicos, indiferentes ao facto de estarem à sombra no interior de um armazém, preparando afincadamente bouquets de proteas, que serviriam para abastecer os mercados de Israel e dos países vizinhos. Um exemplo atípico mas curioso dos efeitos da globalização…

A segunda razão da falência da teoria marxista foi o aparecimento de uma classe média poderosa (defendida pelo economista Nelson Ribeiro, numa conferência proferida nos anos 80 sob o título A atualidade do pensamento marxista). Esse facto terá evitado a implosão do capitalismo, ao esbater o antagonismo de classes que esteve na base do fim dos sistemas socioeconómicos anteriores.
Cerca de dois séculos antes do nascimento de Karl Marx (1818-1883), o inglês John Locke (1632-1704), considerado por muitos o ideólogo do liberalismo, tinha lançado, no capítulo V do Segundo tratado sobre o Governo, a justificação da apropriação capitalista.

De certa forma, na sua pureza original, a teoria de Locke parece assentar nas mesmas bases da defendida por Karl Marx. Locke assumia que Deus deu tudo em comum a todos os homens, que seriam portanto por natureza iguais. A diferença entre ambos reside sobretudo neste particular confronto entre o ateísmo de um e a religiosidade de outro. Mas ao contrário de Marx, Locke defendia também a ideia do direito natural, assumindo que não só o homem precisava preservar a sua vida e portanto teria necessidade de se apropriar do que a natureza colocava à sua disposição, como foi ainda mais longe, defendendo o direito do homem ao fruto do seu trabalho. Na prática Locke assumiu que um homem que trabalha mais do que outro tem o direito de acumular bens em excesso para si e para os seus de modo a suprir as necessidades em tempo de escassez. Essa acumulação seria limitada pelo carácter perecível dos bens acumulados, que de certa forma os fez transitar do cultivo de bens como frutas ou legumes, para outros mais duradoiros como cereais, leguminosas, ou mesmo certos metais. Este limite à acumulação capitalista terá sido de certo modo corrompido pelo aparecimento da moeda, por um lado de inegável utilidade, enquanto consequência natural da apropriação legítima, por outro visto perniciosamente como fonte de cobiça e desejo de posse de coisas inúteis.
John Locke, na sua conceção idealista do capitalismo, antecipava há cerca de quatro séculos os efeitos devastadores da especulação capitalista, que levaram à eclosão de uma crise económica sem precedentes e ainda sem fim à vista. Crise que abalou os alicerces frágeis das estruturas aparentemente sólidas em que se edificou o capitalismo.

A ideologia perdeu protagonismo. O virtuosismo do capitalismo, enquanto sistema gerador de bem-estar nas sociedades, foi seriamente ensombrado. O facilitismo do crédito cedeu o lugar aos impostos e à austeridade. Eis o mundo novo que os velhos teóricos não conseguiram antecipar. Pior que o abalar da esperança, vivemos o toque de finados da ideologia.  
 Foto: Luís Bento

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

A minha visão de reformar



Reformar, v.t. (do lat. reformare) - Dar forma nova, melhor ou mais aperfeiçoada. Atualizar, reorganizar. Restaurar, Corrigir, emendar. Abastecer. Dar a reforma a. (Lexicoteca - Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Círculo de Leitores).

Quando se fala em reformar o Estado, o que se quererá realmente dizer? Será que se pretende definir uma fase, um tempo para parar, cortar com o passado e começar algo de novo? Ou pretender-se-á atualizar, corrigir, aperfeiçoar algo? É que se se trata disto, e tudo me leva a crer que sim, já me é mais percetível. Mas, por outro lado, faz-me pensar, então não é isto que se faz, ou se deveria fazer sempre? É comum dizer-se que uma pessoa nunca está completamente feita, nunca sabe tudo, e que está, por isso mesmo, em constante aprendizagem, num processo permanente de formação, como diz o povo, aprende até morrer. Ou seja, o homem tem de ser capaz de integrar novos conhecimentos, novas realidades e adaptar-se a essas situações, logo, está em permanente mudança, evolução ou, se quisermos, em permanente reforma.

Não será isto que deve acontecer também com o Estado? Com as pessoas que gerem esse Estado? Com todos nós?

A ser assim não me parece fazer muito sentido dizer que é preciso uma reforma do Estado, uma vez que ele, como todos nós, está ou deveria estar, em constante mudança, ou seja em reforma. Muito provavelmente do que se trata é da constatação de que existem pessoas que têm dificuldade, ou não querem, atualizar-se e adaptar-se às novas realidades e isso levanta uma outra questão. É que nesse caso, o principal problema não será reformar o Estado, mas sim trocar certas pessoas por outras que sejam competentes e capazes de processarem as adaptações, correções ou atualizações necessárias de acordo com as novas realidades e com a evolução dos tempos para que não haja quem esteja ou queira travar a reforma.

Afinal como e quando reformar a Saúde, a Educação, a Justiça ou a Solidariedade Social? Cada caso é um caso e deve ser visto como tal. São realidades distintas, com processos de evolução distintos, e consequentemente necessidades de atualização distintas no tempo e no modo, sendo que o que importa é estarem em permanente estado de mudança, em permanente evolução de acordo com a sua própria realidade.

As coisas não se alteram todas ao mesmo tempo, nem com o mesmo ritmo, só porque se diz ou se quer, têm a sua própria idiossincrasia e querer meter tudo no mesmo saco, como o demonstra a experiência, é meio caminho andado para o insucesso.

A meu ver, a reforma é um modo de estar, em constante evolução e permanente adaptação às novas realidades e, por isso mesmo, nunca está concluída. Neste sentido, quando ouço dizer que é preciso fazer uma Reforma do Estado, fico sempre  sem saber se o que se pretende é mudar as pessoas que não são competentes para conduzir este processo ou se se trata de outra coisa.

Parece-me fazer mais sentido dizer que é preciso ir actualizando e adaptando os modelos da prestação da Saúde, da Justiça, da Educação ou da Solidariedade Social, cada um de per si, sempre que as realidades situacionais o exijam e, deste modo, respondam às solicitações da sociedade.

Nos casos em que determinado modelo, como um todo, se torne obsoleto e já não responda, talvez seja necessário uma mudança radical, então que se faça o corte com o modelo velho e se construa um modelo totalmente novo mas que não seja uma reformulação do anterior, pois nesse caso não se trata de uma verdadeira mudança, mas de uma mudança na continuidade.

Creio mesmo que uma das principais necessidades de mudança se encontra ao nível das pessoas, daqueles que gerem os ministérios. Se se diz frequentemente que a gestão privada, nas mesmas condições e com os mesmos problemas, é melhor e mais eficaz do que a gestão pública, então provavelmente não se tata de um problema de modelo mas de pessoas.

Ou então, talvez que as pessoas agregadas a determinados ministérios devessem ter um período de permanência maior ou efetiva, diria mesmo profissional, para poderem dar garantias de continuidade aos processos em curso e participarem nas mudanças que se afigurem pertinentes, quaisquer que sejam os governantes. Porém, estas pessoas deveriam ser selecionadas de acordo com as suas competências profissionais e não por nomeação partidária, pois por muito competentes que o sejam, mesmo com experiênca profissional no privado, como se sabe, poderão ter de sair nas eleições seguintes e os que se lhe seguirem, tudo farão para alterar e dar o seu cunho pessoal, quer por questões de egoísmo quer por razões de autoestima pessoal. Mudando apenas os ministros, mesmo que estes pretendam dar o seu cunho pessoal, nem todo o conhecimento dos processos em curso e respetiva informação se perderiam se a maioria do quadro de pessoal dos gabinetes fosse profissional, o que se traduziria em maior celeridade e recetividade à mudança, mas que, de todo, não é o caso português. 

Deste modo vejo muito difícil operar-se qualquer mudança sustentável, uma vez que um mandato não dá para a concretizar e, de um modo geral, as pessoas que as deveriam realizar não são as mais competentes nem as mais indicadas para tal. Na realidade, o que vamos tendo é uma amálgama pouco consistente de situações, qual tecido remendado e fragilizado.

Em suma, a meu ver, para que qualquer futura reforma seja viável, deve-se começar por dar a reforma a estas pessoas que andam há décadas nos corredores do poder e que não atam nem desatam. Como muitos já o disseram, provavelmente isto só se resolve com novos partidos e com novas pessoas, sob pena de daqui a 10, 15 ou 20 anos ainda andarmos a falar do mesmo.

Foto - José A. Ferreira Alves

sexta-feira, fevereiro 14, 2014

Por uma verdadeira Reforma do Estado – Reflexões iniciais



Neste que é o ano de trabalho sobre o tema em epígrafe, dou aqui início a um conjunto de reflexões sobre a complexa e muito exigente tarefa de desenhar e implementar uma verdadeira reforma do Estado português, objetivo que é desejado, perseguido (terá sido?) e discutido há décadas no país sem nunca se ter chegado a qualquer meta nem se ter alcançado qualquer sucesso na sua prossecução.

Áreas de um Estado soberano

Sou defensor da ideia de um Estado regulador, mais do que ator, da sociedade e da economia, com funções de supervisão eficiente e eficaz de todos os sectores da vida que afetam e determinam a justiça, o bem-estar e a segurança dos cidadãos, agentes económicos e demais atores na vida nacional.

Porém, tal como outros analistas políticos, económicos e sociais, considero que há funções que não podem, nem devem, sair da esfera do Estado. Pela sua relevância, especificidade e impacte na vida de um país, em primeiro lugar e por imperativos de soberania em segundo lugar, há áreas sobre as quais o Estado não pode prescindir de se assumir como o principal responsável e timoneiro nas decisões a tomar e nas orientações a dar às instituições que tutela. Estão aqui as áreas da justiça (social e económica), da solidariedade e segurança social, da defesa nacional, da administração interna e da diplomacia político-económica – os designados negócios externos.

Estas são áreas que devem ser do domínio do Estado e sobre as quais nenhum agente económico ou instituição fora da esfera do Estado tem condições e competências para as definir, regular, assumir e coordenar.

Liberalizar sectores sobre regulação e supervisão Estatal

Depois daquelas, compete ao Estado ser o garante de um sistema de educação e de saúde, sólidos, justos, adequados às necessidades e exigências dos cidadãos, tendo em vista o bem-estar, a justiça e o progresso da sociedade. Estas, sendo áreas da sua responsabilidade direta, são já hoje áreas em que o Estado delegou, em parte, e bem, nos agentes económicos privados, a sua prestação e a sua gestão. Compete agora ao Estado regular e supervisionar toda a atividade destes sectores, regulamentando e definindo as regras básicas de funcionamento, zelando pela equidade e legalidade das suas práticas, e proporcionando aos atores respetivos a liberdade de atuação e decisão dentro das regras estabelecidas.

Sectores sensíveis do Estado

Para além dos sectores acima identificados, há outras áreas igualmente sensíveis e de significativa importância para o país pois interferem diretamente com aspetos da soberania nacional. São estas as telecomunicações (sector muito sensível para a intelligence portuguesa e para a vida dos agentes económicos), a energia e as águas. Sendo certo que os sectores das telecomunicações e energia estão hoje entregues à esfera privada, já o sector das águas merece uma reflexão muito especial pela delicadeza que assume e pela importância estratégica e significância que tem quer para o país quer para a vida das pessoas. É talvez o sector mais sensível dos aqui referenciados e não está concluída a reflexão sobre se deve (ou pode) passar para a esfera privada.

De qualquer forma, com exceção do sector das águas, tema não concluído e que merecerá outras reflexões, o Estado tem o papel e a responsabilidade de criar um quadro regulatório adequado e uma supervisão efetiva e rigorosa das áreas energética e de telecomunicações, hoje entregues aos agentes privados. Cumpre-lhe definir as regras, os procedimentos, as obrigações e os direitos a respeitar pelos diversos atores privados para depois exigir e garantir o seu cumprimento.

Como reformar?

Finalmente uma última reflexão, neste primeiro e breve ensaio, sobre o modelo de reforma do Estado. Qualquer que venha a ser a reforma a implementar no Estado, deve ser em primeiro lugar definido o que se entende por reformar o Estado. Por outras palavras, o que reformar, como reformar e quando reformar. Dito isto, facilmente se chega à conclusão de que qualquer reforma a implementar não poderá nunca estar dependente de qualquer ciclo político-partidário. Por mais simplista que seja essa versão de reforma, nunca se conseguirá concluir qualquer reforma numa legislatura de 4 anos e talvez tal não caiba numa segunda legislatura.

Assim sendo, e seguindo a lógica da gestão das organizações do mundo empresarial, essa reforma terá que ser efetuada em primeiro lugar por etapas ou fases, depois por instituições ou grupos de instituições e finalmente, dentro destas, pelas suas diversas componentes/unidades. Simplificando e concretizando, atendendo às urgências e prioridades do país, seria desejável que os mentores de uma verdadeira reforma do Estado começassem por repensar o sistema de segurança social, saúde e educação, por exemplo, atribuindo a esta fase um período de 4 anos para a concretização das necessárias reformas dos respetivos Ministérios (equivalente a uma legislatura). Numa segunda fase, poder-se-ia dar prioridade à reforma na justiça seguida do ordenamento do território, para finalizar com a reforma dos sectores da agricultura e do mar, dedicando-lhe de um novo período de 4 anos para a sua conclusão.

Não é possível reformar tudo e ao mesmo tempo. Estes processos têm custos elevados, exigem muitos recursos e consomem muito tempo. Ao mesmo tempo o país tem que produzir, criar riqueza e bem-estar, não se pode fechar sobre si próprio. É por isso ilusório pensar que esta obra é realizável numa legislatura e em simultâneo. Esperamos que o bom senso esteja presente entre os decisores políticos e responsáveis primeiros desta reforma.