Fórum de Reflexão Económica e Social

«Se não interviermos e desistirmos, falhamos»

domingo, outubro 13, 2013

Não há medidas bacteriologicamente puras

A comunicação deste Governo é trágica: todos o reconhecem. Mas, além da comunicação, é igualmente trágico o modo avulso e casuístico como certas medidas são tomadas. 

Sobre o modo avulso e casuístico das medidas

A recente proposta de corte das pensões de sobrevivência e as reações que se lhe seguiram tornaram claro para mim que estes ajustes de contas pontuais, com determinados segmentos da população, visando a justiça distributiva, são mais prejudiciais do que benéficos. Querem corrigir mas acabam por pôr em evidência, pelo confronto, situações ao lado, iguais ou piores. Não é possível legislar de forma tão perfeita que o evite. Além de, dentro da mesma classe, no caso os reformados, criar dois segmentos, o das pensões de sobrevivência e o das outras. Está, aliás, já prevista uma outra medida apenas destinada aos aposentados da Caixa Geral de Aposentações, deixando os da Segurança Social de fora, que volta a criar duas classes, apenas mudando a geometria. Também aí, a coberto de uma aparente justiça, a medida em muitos e muitos casos não será justa. 

Pior do que tudo isto, estas medidas deslassam o tecido social, quebram a coesão, alimentam invejas, corroem as relações entre as pessoas, destroem o ânimo, minam o país. Nunca haverá medidas bacteriologicamente puras. 

Deixava ontem (12 de outubro) Marques Mendes como recomendação ao Governo que, nos cortes para 2014, fossem tidos em linha de conta os agregados em que os dois elementos fossem funcionários públicos. Não deixei de sorrir pela ideia, que achei pouco refletida e atirada para ali para encher espaço televisivo, e logo pensei na chusma de divórcios que adviria se fosse legislada uma medida de discriminação positiva como a que ele propunha. Aliás, essa pseudo-medida e as consequências que se lhe seguiriam dá bem conta da quase impossibilidade de uma distribuição salomónica dos custos do ajustamento. A distribuição será sempre desigual: há quem tenha ficado desempregado, há quem não encontre emprego, há quem encontre um subemprego, há quem encontre um emprego mal remunerado e desempenhe as mesmas funções pagas a outros a um valor superior, há quem tenha, no sector privado, sofrido cortes superiores aos do sector público… Há, há, há… Todos esses estão aparentemente piores do que os aposentados ou os funcionários públicos… Obviamente que há também uma enorme mole de gente, do sector privado, que vê os seus rendimentos intocados, como se estivesse num casulo… Há, pois, de tudo… 

Isto não significa, porém, que o Governo deva pactuar com situações flagrantemente injustas, mas legisle para o futuro e deixe o que está como está, corrigindo as assimetrias atuais por via da tributação progressiva. Aliás, o Governo apanha recorrentemente com o Tribunal Constitucional em cima e parece que não aprende… A medida sobre as pensões de sobrevivência corre, aliás, o sério risco de ser declarada inconstitucional, ainda que as decisões do TC sejam uma roleta russa oracular, pois nunca se sabe o que dali pode sair…

Sobre a comunicação

Enquanto funcionário público irei sofrer para o ano mais um corte de 10% no salário. Conhecendo minimamente os grandes números do país, a medida oferece-me pouca contestação. Isto apesar de praticamente só ter rendimentos do trabalho, de a mesma me ir ao bolso, de estar a empobrecer a olhos vistos. Não consigo ser intelectualmente desonesto ao ponto de a contestar, por comparação com outros segmentos. A recomendação que eu, à guiza de Marques Mendes, faria ao Governo é que me diga: «lamento, tenho de te cortar salário porque não há dinheiro», mas não me diga que há funcionários a mais, nem me fale em privilégios que eu não tenho. É que eu percebo o argumento de não haver dinheiro: mete-se-me pelos olhos dentro, de forma cristalina, mas não entendo e não vislumbro, porque tenho olhos na cara e vejo o que se passa ali ao lado, os privilégios que me dizem que tenho… Ainda ontem, aliás, passou, numa das televisões, uma reportagem de uma empresa que fabrica sacos e que montou um ginásio para os seus colaboradores. Falaram trabalhadores e patrão sobre as vantagens daquilo e o tom da notícia era de júbilo… Questiono-me se no meu serviço se montasse um ginásio o tom da notícia seria o mesmo? E, por favor, não me venham com a lengalenga de que o dinheiro das empresas é das empresas e o do Estado é de todos nós… É que se aquele ginásio foi montado é porque havia dinheiro para isso e se havia dinheiro para isso é porque a venda do produto permite a existência desses lucros… Pela mesma lógica, cada cêntimo daquele ginásio é retirado a cada um de nós no preço dos produtos que compramos e que incorpora o custo dos sacos…

As medidas têm, pois, de ser comunicadas com verdade, sem subterfúgios, sem enviesamentos argumentativos e sem ocultar uma parte da realidade. As medidas têm de ser comunicadas pelo seu valor facial e serem tendencialmente universais. Será a única forma de manter um mínimo de agregação social que nos permita continuar a levar o barco para a frente.

As medidas avulsas e os erros de comunicação demonstram também à saciedade as deficiências arquitetónicas do edifício da Zona Euro. Estivéssemos nós na plena posse das ferramentas de desvalorização monetária e cambial e outro galo cantaria. O efeito era universal, tendencialmente mais justo, podendo o Governo corrigir, através de medidas de apoio social, as quebras de rendimento dos escalões mais baixos. Empobrecíamos, mas empobrecíamos todos por igual, ou pelo menos de forma mais igual. Porque é evidente que teremos todos de empobrecer.

2 comentários:

Mário de Jesus disse...

Caro Paulo

De acordo em quase todos os pontos. Porém duas ressalvas e começo pelo fim. Nós não teremos que empobrecer. Nós, portugueses vimos a empobrecer há já algum tempo e estamos já todos bem mais pobres. Genericamente falando.

Mário de Jesus disse...

Segunda ressalva. A dos produtos e a do ginásio para colaboradores. De facto o dinheiro é da empresa e dos seus donos (accionistas se quiseres). E em vez de construir o ginásio os seus donos poderiam ter simplesmente optado pelos seus dividendos.

E o consumidor quando compra os produtos usufrui deles, torna-se seu proprietário e beneficiário do usufruto de tudo aquilo que esses produtos lhe proporcionam. O que não significa que estão a contribuir de forma alguma para o ginásio.

É uma troca, dinheiro por produtos. O resto é pura divagação.